segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Alguns apontamentos sobre formação, experiência, narrativa na formação docente em diálogo com algumas idéias bakhtinianas.



Guilherme do Val Toledo Prado (UNICAMP)
Antes de mais nada, gostaria que me situassem, na leitura destes apontamentos, em um porto de passagem que poderia começar, para mim, reafirmando as reflexões acerca da centralidade da linguagem nos atos educativos - e conseqüentemente nos processos de formação, nas vivências e experiências que nos constituem e nós constituímos e nas narrações que realizamos para tudo isso contar, a partir da palafitas fincadas no paralelo entre o enunciado de Karl Marx – não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência – e o enunciado de Mikhail Bakhtin – não é a consciência que determina a expressão mas a expressão que determina a consciência. Os efeitos de sentido, os atos responsáveis e a respondibilidade dada por essas retas paralelas que se cruzam no caminhar infinito são, por enquanto, inúmeras, e gostaria, por esse momento, de brevemente apresentar algumas delas.
Como a proposta deste pequeno escrito é dizer algumas coisas sobre formação, experiência e narrativa a partir de algumas idéias bakhtinianas, inicio por dizer algumas coisas relativas à formação no âmbito da formação de professores, já que importante é começar por um marco que principia após um porto de passagem seguro de onde partir...
Numa perspectiva ampla, tomando como referência as contribuições de Antonio Nóvoa e Marie-Christine Josso, a formação coincide com o conjunto de vivências que produzem aprendizagens ao longo da vida, a saber: o convívio com os familiares, o convívio com outros (des)conhecidos, a escolarização, as amizades, as leituras feitas, as escritas produzidas, os estudos realizados, as pesquisas feitas, as viagens, e também com muitas outras situações, tais como: os problemas familiares, os problemas de relacionamentos, as questões suscitadas na escola, as reflexões pessoais, compartilhadas ou não, a conversa e o diálogo com pessoas tomadas como referência, a discussão de idéias, a psicoterapia, nossa participação em diferentes grupos e movimentos sociais, a militância em diferentes instâncias sociais e também o contato com as artes, a fruição junto a diversas manifestações culturais, o contato com a espiritualidade, com e literatura e com todos os tipos e formas de conhecimentos.
Neste contexto, poderíamos dizer que a formação profissional, pode ser o conjunto de vivências formativas relacionadas diretamente ao exercício da profissão, como nossa graduação na universidade, cursos de atualização e aperfeiçoamento profissional e também aquelas que contribuem de modo indireto, como as vivências formativas relacionadas anteriormente, constituintes de nossa formação, digamos, pessoal.
Assim, contribuem para a formação profissional na educação, certas vivências relacionadas à escolaridade, aos estudos, as pesquisas, à reflexão pessoal e compartilhada, às leituras e as produções escritas; e também a conversa e diálogo com pessoas tomadas como referência, a discussão das idéias, a militância em grupos ou movimentos sociais, o contato com as artes, com diversas manifestações culturais, com a literatura e todos os tipos e formas de conhecimento.
Não podemos deixar de lembrar, como apontou Antônio Nóvoa, citando Jennifer Nias, que “o professor é uma pessoa, e uma parte importante da pessoa é o professor”. Uma dialética dialógica que é tão bem apontada por Mikhail Bakhtin, em suas reflexões acerca do autor e do personagem: “É nesse sentido que o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, da sua visão e da sua memória: memória que o junta e o unifica e que é única capaz de proporcionar-lhe um acabamento externo”. Acabamento que é dado pela ação docente do professor e marcado pela incompletude de sua pessoa e vice-versa. E que é potencializado pelas múltiplas relações estabelecidas com o outro constituído em sua docência – o discente, o estudante, o aluno, a criança, o jovem, o adulto...
E se formação pode ser alguma coisa das coisas ditas acima, talvez uma idéia de experiência possa colaborar para compreendermos uma possível relação entre formação e narrativa e como essas articulações podem ser tecidas com algumas idéias bakhtinianas...
Experiência, não experimento. Experiência, não experimentação. Experiência, não ciência. Experiência, como ensinou Jorge Larrosa, é aquilo que nos passa, aquilo que nos toca, aquilo que nos acontece, aquilo que... e ao nos passar, nos tocar, nos acontecer...nos passa, nos toca e nos acontece, formando-nos e transformando-nos. Algo que nos acontece e que nos possibilita, porque nos aconteceu, apresentarmos e apresentarmo-nos de outro modo, diferente do modo como antes nos apresentávamos.
É aquilo que vamos produzindo em nós, para nós, por nós e com outros, e vai dando sentido ao que vivemos, como um saber da experiência: “o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao largo da vida e no modo como vamos acontecendo e dando sentido ao acontecer do nos acontece”, como disse Larrosa.
Mas será que isso pode nos acontecer ainda? Na perspectiva de Walter Benjamin, “(..)As ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo (...). Para ele, essa capacidade de intercambiar experiências, estão em baixa, pelas incontáveis hordas de informações homogeneizadas, hierarquizadas e, elevadas à categoria de verdade, que nos chegam por todas as vias comunicacionais e pelas velozes relações com o mundo exterior que estabelecemos no mundo da modernidade capitalista. Todas as outras coisas, outras informações insignificantes, irrelevantes, não verídicas mas verossímeis, as pequenas insignificâncias, os restos e as ruínas, como tão bem versou Manoel de Barros, passam e não são elevadas como dignas de fazer parte do acervo cultural e patrimonial humano.
É Jorge Larrosa também que nos apresenta possibilidades, seja para compreendermos a experiência como algo que nos passa e que ao passar-nos, nos forma e nos transforma, seja para compreender que para que ela nos passe, e nos forme e nos transforme, são necessários alguns gestos, alguns convites: “A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.”
Tempo e espaço que, tanto para Walter Benjamin como para Mikhail Bakhtin, nos é dado pelo exercício de narrar, de constituir pela palavra uma ponte que possibilita olhar/ver, ouvir/escutar o outro como uma possibilidade de dar-me um acabamento, sim sempre provisório, mas que amplia meu horizonte de possibilidades e me inscreve, como tão bem apontou João Wanderley Geraldi, no mundo das perguntas e da busca por respostas.
A narrativa (seu exercício oral e escrito), nos processos formativos docentes, possibilitaria então: a emergência das histórias formativas e de aprendizagens dos sujeitos; o intercâmbio de dizeres acerca do vivido e seus processos de ressignificação e produção de sentidos; a constituição de possibilidades produzidas pela reflexão; a reflexão do que foi, do que pode ser, do que poderá vir a ser; ampliar os espaços formativos no dizer coletivo dos narradores de suas próprias experiências; potencializar a compreensão no contexto do trabalho pedagógico-educativo do pensado (teoria) e realizado (prática).
A narrativa, em processos coletivos de formação e reflexão sobre as experiências constituídas no e sobre o trabalho pedagógico, possibilitaria não só a emergência de um sujeito narrador, como também a instauração de uma comunidade reflexiva narradora, que instiga, constitui e consolida os saberes e fazeres acerca deste trabalho e da interlocução, conseqüente e compromissada, com outras instâncias sociais e discursivas produtoras de saberes pedagógicos-educativos, como as Universidades e os Sistemas de Ensino.
Ou seja, trabalhar com narrativas, em contextos de formação profissional inicial ou continuada, é afirmar a centralidade das experiências, a centralidade dos sujeitos narrradores, a centralidade dos atos educativos e fazer valer as dimensões de autoria, autonomia, legitimidade, beleza e pluralidades ético-estéticas dos discursos e práticas dos sujeitos – profissionais da educação
Ou, numa perspectiva apontada por Mikhail Bakhtin, “do lugar único de minha participação no existir, o tempo e o espaço na sua singularidade são individuados e incorporados como momento de uma unicidade concreta e valorada”.
Pensar esses poucos apontamentos, essas poucas relações entre formação, experiência, narrativa e linguagem, aconteceu pelas leituras de alguns textos, que penso, são interessantes de serem continuamente relidos.
Eis-los:
Bakhtin, M. (Volochinov, V.) – Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. 3ª edição. Editora Hucitec, São Paulo, 1986.
Bakhtin, M. – Estética da Criação Verbal. 1ª edição. Editora Martins Fontes, São Paulo, 1992.
Bakhtin, M. – Para uma Filosofia do Ato Responsável. 1ª edição. Pedro e João Editores, São Carlos, 2010.
Barros, M. – Memórias Inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. Editora Planeta do Brasil, São Paulo, 2010.
Benjamin, W. – Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas, volume 1. 3ª edição. Editora Brasiliense, São Paulo, 1987.
Geraldi, J.W. – Portos de Passagem. 1ª edição. Editora Martins Fontes, 1991.
Geraldi, J.W. – A aula como acontecimento. 1ª edição. Editora da Universidade de Aveiro, 2004.
Josso, M-C. – Caminhar para si. Editora da PUC-RS, Porto Alegre, 2010.
Larrosa, J. – Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Editora Contrabando, Porto Alegre, 1998.
Nóvoa, A. – Formação de Professores e Trabalho Pedagógico. Editora Educa, Lisboa, 2002.

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